Lago e Mar
Lago
A manhã desta quarta veio para interromper minha rotina, depois que decidi mudar-me para a pequena cidade nos confins de São Paulo os dias tornaram-se tranquilos e poucos diferenciavam entre si, uma rotina digna do escarnio que vim por me tornar, fato que na verdade ocorre a todos os homens, fui, não obstante o mais valente e recusei-me a proliferar minha miséria e veja só que para tal não recebi nem sequer uma única honraria e nem ao menos uma menção daqueles que outrora foram camaradas de revolução, de ideais, de perversidades ou de simples gandaias (os deuses bem sabem que para não deixar consumir-se é necessário alguma válvula de escape), bons tempos aqueles de grandes pensadores, não me recordo o que era mais prazeroso, as discussões infindáveis sobre nossas próprias constatações ou a velha amiga cachaça a consolar nossos pobres corações. Mas meus camaradas não me escreveram, não me visitaram, continuaram suas vidas sem o ar de minha graça e tenho certeza que sem a mesma sobrou-lhes pouca graciosidade. João, Henrique e outros tantos... Que tinham de bom? Apenas as decepções patéticas que outros mais capacitados décadas atrás, andam hoje a vangloriar os cargos que ocupam e os pertences que possuem, apoiam-se em títulos e esqueceram da própria condição nefasta que consome qualquer ser pensante, mas eu me recordei e hei de recordar até meu último dia.
Apesar de tais pesares esta manha o carteiro trazia-me em sua insignificante porem útil existência dar esperanças a meu ego e senso de importância, trazia-me a injeção da decadência humana, veio devagar a passos tranquilos, depositou a carta ao pé do portão e acenou com a cabeça cumprimentando-me, ao passo que retribui-lhe, a humildade faz-me grande, a carta depositada pelo simples homem de pele marcada pelo sol e pelo sofrimento que a vida há de proporcionar a todos, extasiou-me por completo, já cá estava a imaginar-me a ler as saudosas palavras nostálgicas e os pedidos para o meu regresso, talvez alguma paixão antiga e mal resolvida a se arrepender e implorar por meu amor, ah... Quão bom é o mundo guiado por aqueles que fazem e assistem o teatro de marionetes, infelizmente tarefa impossível esta, até mesmo para o mais habilidoso dentre os ventríloquos, temos as rédeas das marionetes, mas o espectador é quem faz o espetáculo e é disto que aqueles que como eu não possuem pretensão alguma de ficar apenas na mediocridade que é nos imposta acabam por procurar: A distância máxima daquele que observa, chamo a esta teoria de Veloso Anferetur Videntium(VAV) em homenagem ao seu criador, no caso, faço-me o dito cujo. A bendita é de uma simplicidade enorme para os indivíduos dotados de uma mínima capacidade de compreensão, partiremos de um princípio niilista para termos um fio de Ariadne nesse labirinto que se encontra no plano das ideias, a ter isto bem estabelecido vamos às conjecturas... Imaginemos o universo em sua infinita extensão (há aqui já alguma arrogância, entretanto aqueles que se privam da mesma são dignos de pena, continuemos...) o universo em sua plenitude comporta fenômenos extraordinários e de magnitudes imensuráveis, estrelas nascem, morrem, dão vida a sistemas solares, sucumbem e acabam por se transformarem em buracos negros que engolem tudo aquilo que um dia criaram, há chuva de diamantes em saturno e tantos outros fenômenos que poderiam tirar-nos o folego se os presenciássemos, tais maravilhas existem independentes de nossas observações ou de nosso vago existir, há aqui o criar no seu maior sentido, o criar do zero, o criar sem motivo, sem explicar, apenas o criar em sua essência, o ato da criação, o seu criador e aquele para quem cria formam a tríplice criativa mor que no fim é o que nos inspira aqui embaixo em nossa ridícula bolha, nossa primeira e continua inspiração, a natureza, apoia-se no que compõem o nada para dar vida a significados que fazem parte apenas desta espécie decadente a qual infortunadamente faço parte.
Infelizmente minha pequenina e insignificante carta não estava a conter nada relevante como as minhas posteriores indagações e reflexões. Do contrario quando a peguei logo vi, com certa decepção, que não seria agraciado com inovações ou provações, um simples envelope onde se lia:
Remetente: Marina C. A. Materazzi.
Destinatário: Luís S. Veloso.
Endereço: R. Flamingo, 500, Dracena – SP, 17900-000, Brasil.
Marina era uma velha amiga a qual dividi parte da adolescência e juventude, nunca apresentou sinais de aptidão para o extraordinário e para fugir dos padrões, do contrario seguiu os trilhos óbvios da ferrovia, apesar de morarem dez anos no mesmo condomínio na região metropolitana de São Paulo nunca tiveram de fato uma amizade, dividiram grupos de amigos, estiveram em discussões em botecos e compartilharam a mesma garrafa algumas vezes, mas nunca julguei que tínhamos entre nós nada em comum ou que algum dia receberia uma carta da mesma, confesso que um grão de curiosidade brota em meu âmago, de qualquer forma Marina era parte de um grupo de vizinhos que possuíam certa riqueza, apesar das más línguas a dizer que caíram na falência, aqueles de bons miolos bem sabem que neste país é mais fácil ver um peixe se afogar a ver uma família de poder realmente sucumbir, no máximo abandonam seu status quo e ao invés de terem petit gateu francês, partem para o brasileiro. É certo que não possuem mais mansões na principal avenida da capital paulista, mas garanto-lhes que ainda frequentam lugares elitizados, a terra da garoa tem certa dificuldade para lavar aquilo que já não lhe favorece mais e é digno apenas do passado, meus contemporâneos que os digam, escolhem sempre os mesmos cavalos, por alguma razão esperam uma corrida diferente, mas não cabe a mim aqui discorrer sobre a leviandade paulista(quiçá brasileira). Marina se bem me lembro, teve todas as regalias que o bom paulista merece frequento os colégios que justificavam sua descendência, já no tempo do ensino médio estava a falar três línguas e sabia locomover-se em Nova Iorque melhor que os que lá nasceram e viveram, amava entrar em longas discussões para provar os pontos de Freud e Nietzsche e declamava a miséria do mundo enquanto apreciava um bom vinho no restaurante cujo nome remete a capital francesa, neste aspecto fazia bem, os whiskies sempre me fizeram muito mal, contudo devo admitir que o movimentar circular dos copos em minhas mãos e os discursos eloquentes fazem-me falta.
Abri e desdobrei a maldita carta.
“Caro Veloso,
Sinto lhe incomodar em tua contemplação, todavia creio que as circunstancias me justifiquem, preciso de vossa sabedoria e conhecimento, um mal tenebroso me aflige, não sei quando ou de onde veio, porém a condição impede-me de me levantar e me aflora os espíritos de forma que me sinto atribulada e incapaz de organizar meus pensamentos que tu se te recordas bem sabes, outrora eram brilhantes e diferenciavam-me dos demais, agora se fazem confusos e não concatenados, não possuo mais qualquer vontade de agir, o libido se esvai a cada segundo, encontro-me de cama e quem escreve é uma de minhas empregadas, sei que nunca fomos um exemplo de proximidade, contudo sei de sua sublimação e missão nesse lugar deplorável, achei que tu e vossa excelente capacidade intelectual achariam deveras desafiador e digno de vossa paixão em assuntos de esfera insolúvel, apelei aos maiores médicos de nossa nação e da nação que faz-se(infelizmente em minha modesta opinião) imponente ao norte e nenhum dos tais foram capazes de solucionarem a condição que atinge a minha pessoa, dito isto, procuro ajuda de alguém aquém das capacidades comuns que seja hábil para livrar-me de tal aflição, saberá da gravidade do problema assim que pousares os olhos em mim, espero que esta carta apesar de simples capture a atenção de vossa excelência, espero ver-lhe em breve, resido na mesma que foi palco de nossa juventude, tenho certeza que reataremos o laço criado pelo destino e alcançaremos grandes jamais alcançadas, pretendo publicar o meu próprio caso quando o solucionarmos. Parta assim que se fizer possível, imploro-lhe.
Com os mais doces cumprimentos,
Marina C. A. Materazzi.”.
No termino de minha leitura, acabei perplexo, parecia-me que minha amiga estava com um mero distúrbio mental que se alimenta de sua mente fraca, mas devo dizer que a tenta-me voltar aos trabalhos que deixei e a oportunidade para provar-me frente ao passado que me deu as costas, como Maquiavel já colocava em sua obra, a qualidade e a fortuna faz o agraciado, a fortuna bate a porta. Chegou a hora de dar adeus a medíocre casinha branca e pequena com seus cômodos pequenos e praticamente desmobiliados exceto pelos poucos livros e manuscritos que a povoa, dizer até nunca ao pequeno quintal de terra devastada que esta desprezível residência possui. Farei desta o meu retorno, meu isolamento chega ao fim e rumo outra vez mais a tentar convencer vagamente que ainda há sóis para serem observados, levarei os entorpecentes para as próximas gerações, minha pequena amiga me ajudará a reconquistar as glorias de um passado esquecido, certificar-me-ei que eles hão de seguir os caminhos da prosperidade.
Mar
Após algumas semana na casa de minha cara colega, comecei a perceber que não seria fácil como ousei imaginar, quando cheguei estava no auge de meu humor, tinha plena convicção de meus objetivos e de que ajudar Marina não levaria mais do que algumas boas frases de mimos que os de nossa laia adoram ouvir, contudo na primeira semana não obtive qualquer progresso, apresentei-me e fui logo tratar de suspirar sonhos de uma noite de verão nos ouvidos de minha cara amiga, bajulei lhe o tempo inteiro e até mesmo chamei cá três ou quatro camaradas para animar a pobre coitada, tudo pareceu não surtir qualquer efeito, passado essa fase decidi que talvez tenha subestimado sua condição, para ser franco começo a perceber que eu mesmo estou a começar sentir os efeitos da maldita peste, como se a enfermidade fosse contagiosa, estou a sentir o princípio da insanidade já em estágio avançado na paciente, os dias parecem menos relevantes de uma forma miserável e melancólica, sinto que as colunas que sustentam minha consciência cedem devagar mas constantemente, percebi também que os empregados mantém distância do quarto de Marina, evitam-no ao máximo, três já pediram demissão, restou-lhe apenas Solidade que estava com Marina desde o começo e parecia ter uma resistência incrível, Marina mal se movia na cama, na maior parte do tempo estava imóvel com os olhos vidrados encarando o teto, Solidade cuidava da coitada com empenho e sempre mantendo um diálogo motivador, como se tudo estivesse bem, parece-me que é a única que ainda possui alguma esperança.
Tentei sem sucesso usar de conhecimentos da filosofia, psicologia, psicanalise, porém a cada tentativa sinto que a perco mais e mais, e a cada momento cresce a incerteza e um vazio toma meu peito dando consciência da minha arrogância posterior, vim pela gloria e pela coroa de louros, fiquei pelo vazio dessa "inaceitação" de que nada que farei valerá e nada do que direi vai fixar o infíxavel, tomo consciência apenas agora de que talvez nunca tenha tido as competências que requerem uma existência valida, e nem mesmo reconhecer a minha falha traz me paz, questiono-me incessantemente o que trará alento a minha mente dos terrores silenciosos e apáticos que encontrei aqui, e a cada certeza que dei-lhe vinha-me com uma questão, questiona-me frente tudo que sei e por fim percebo que não sei nada e isso fere-me a alma de uma forma horrenda, e o monstro que me encara e me questiona mostra-me em teus olhos um sossego, oferece-me a mão de um descanso eterno, um nirvana regado de uma ausência silenciosa e penetrante e isso leva-me as lagrimas...
Por que criatura?
Por que tão cruel, por que ousa seduzir-me, o desdém que emana frente a minha insignificância, minha falta de opções, pois vejo que não há necessidade, pode muito bem arrastar esse saco repleto de turbilhoes a que chamo, eu, sem o menor esforço, sem a menor resistência, frente a você, nada sou, porém, escolhe a tortura que corrói até as entranhas das mais profundas vigas que me sustentam a sanidade. Sabe que no fim irei de bom grado rastejar até o poço infindável, sabe que me ajoelharei e pedirei clemencia.
Todas as portas são janelas que se encontram fechadas, mas quando olhei por uma delas o monstro no abismo olhou-me de volta das profundezas de um abismo refletido no monstro vi o meu próprio poço e nele ressoava a canção hipnotizante que emanava de Marina, que alcançava os outros e então os consumia lentamente até tornar-lhes fonte do canto, a canção também estava em mim e com o decorrer dos dias ela cresceu e agora era possível escuta-la lenta, penosa, um fardo pesado demais para se carregar, cada verso como uma fenda gravitacional, puxando tudo aquilo que algum dia existiu de dentro daqueles que habita, um cancro que nasce no amago dos seres e se espalha, todos nós o possuímos, mas ali naquela casa, guardado no peito de Marina emanava o mais forte deles, como um mar com as ondas oscilando e ao invés de levar a água salgada traziam o desespero, dor, sofrimento, angustia, apatia e o que mais pode se imaginar de tal oceano perverso, e no ressoar de suas ondas era possível escutar:
Venha ao Mar
Venha banhar-se
Venha nadar
Abrace a catarse
Todos os homens clamam
Por glórias sem dor
Abismos os chamam
Assassinos sem qualquer pudor
O arrogante e pseudo-sábio se apresenta
Dele a vida se esvai
Fraco, avança frente a tragédia
No abismo olha, e nele cai
A abastada de olhos fechados resiste
Poucas energias lhe restam
Por fim cede
E os bens não lhe salvaram
Da morte modesta
Lucas Molina, 10796
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