Por causa dos vendavais.

TEXTO DADAÍSTA
5 LIVROS, 10 PALAVRAS

Escolhi 5 livros aleatórios da minha estante. Abri cada um duas vezes aleatoriamente, colocando o dedo num local também aleatório da página aberta, de forma a selecionar 10 palavras aleatórias. O objetivo deste exercício é criar uma narrativa que una as 10 palavras na mesma história.

Palavras:

predestinado - patrocinar - medo - furadas - vendavais - visitado - pá - dominar - homens - autoridades

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O relógio marcava seis da tarde naquela terra, conhecida nas aldeias mais próximas por serem constantes os assombrosos vendavais. Os gatos arranhavam os colos das velhas sempre que os portões batiam, e não havia uma única cabeça que não se virasse para o exterior quando as janelas começavam a tremer. Se havia polícia, poucos a viam na rua: até as autoridades se retiravam para os seus aposentos durante grande parte do seu serviço.
Gustavo gostava da sua terra assim. Saía à rua quando os outros saíam da rua e dançava pelas ruas ao sabor da ventania. Medo ele não tinha. O vento trazia-lhe uma presença estranhamente confortável e o frio, cá fora, permitia-lhe sentir o quente no seu peito mais facilmente.
Voltava para casa ao anoitecer num passo demorado, lembrando-se de passar pela horta. Os ventos fortes remexiam a terra e um dos brócolos rolou pelo solo até aos seus pés. Trouxe-o para dentro como um amigo que o tinha subitamente visitado e tratou de fazer o jantar, só para um.
Já de noite, o vento lá fora não cessava, dando um tempo de descanso às ruas para se recomporem até que os homens as voltassem a pisar na manhã seguinte. Trancou a porta e caiu na cama.
Quando acordou, desejou ter ficado em casa na noite anterior. Tinha uma pá aos pés da cama, a colcha furada e marcas de cigarros nas mãos. O telemóvel marcava as seis da tarde e tinha 17 chamadas perdidas. Na sua cabeça três tipos de dores diferentes e na boca sentia um gosto pastoso.
Pisando os passeios de betão deu passeios pela cidade, cambaleando ou dançando ao som de sirenes longínquas, dependendo da perspetiva. Odiava aquela cidade: sentia-se mais um de tantos condicionados pelos moldes do meio urbano, um monstro que ameaçava a sua liberdade. Não sentia medo, mas um desconforto constante porque lhe era impossível fugir do ambiente em que vivia.
Ainda assim, ia em direção ao centro desse buraco luminoso enquanto os últimos resquícios de luz natural desapareciam por cima do fumo dos carros. Lembrou-se de passar pelo bar do costume, onde o barman, surpreendido com o seu aspeto terrível, tomou a liberdade de lhe patrocinar uma bebida. Acolheu aquele daiquiri predestinado no seu estômago como quem se entretém com um velho amigo que não via há muito e adormeceu por uns minutos com o cotovelo no balcão.
- Vá, Bruno, fora daqui que ainda tenho de limpar esta espelunca.
Abriu os olhos e pôs os pés fora do estabelecimento, dando de caras novamente com o fumo, os carros, o betão. Sem dominar a mesma dança de antes, voltou para casa. Trancou a porta e caiu da cama.
Miguel Luz, Arte Multimédia, nº 11468

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